quarta-feira, 29 de julho de 2015

Crônica de Julho nº3 (ou eu mudo?)

O relógio holandês da matriz fez soar doze pancadas! Meia-noite. Espere, espere, calma! Que pancadas são estas? Alguém percebeu que elas estão aceleradas? Preste atenção! Estão sim! Quem reajustou isto? Que agonia! Não se pode mudar o ritmo deste marcador do tempo são-joanense! Ou pode? Só porque é uma tradição? Só porque é como eu ouço desde pequena e não quero que mude nunca? Algumas coisas mudam...
O tempo não acelera como nas marteladas no sino da torre esquerda da Matriz, mas é implacável. Disse Caetano na canção 'Oração ao Tempo': Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo, (...) é um dos deuses mais lindos. Ele "é" contínuo, corretíssimo em ser contínuo!
E como atrelados ao ciclo do tempo nós estamos, fomos sentenciados às modificações físicas e também nos foi permitido a evolução intelectual, as etapas da adaptação, a nos moldarmos, nos foram dadas estas inconvenientes rugas e abomináveis fios brancos mas também outras possibilidades. O colágeno se despediu e partiu, o metabolismo diminui o ritmo, a gordura localizada se instalou de vez no abdômen, até no braço rente ao cotovelo. E o relógio da matriz continua a lembrar: O tempo é contado, contínuo, e agora acelerou suas pancadas!
Não tenho dúvidas que tens agora todas as incertezas, e isso, acredite, é sabedoria. Porque o tempo passado te fez amadurecer sem ainda cair podre ao chão. Você está quase no ponto de colher e ser apreciado. É o tal queijo gorgonzola de que fala a atriz e escritora Maitê Proença. Há de se aceitar, resignar-se, afinal algumas mudanças vieram pra ficar. Outras se reciclam e voltam!
John Lennon por exemplo, regressou à esquina do Kibom com seu violão cantando 'All you need is love'! Em outras proporções é verdade, mas ele está de volta! E o que dizer da Rua da Zona? Num passado não muito distante foi tão difamada, descriminada por ser a rua onde se localizava o baixo meretrício da cidade, pequenos bordéis e prostíbulos. O tempo passou, tudo se acabou e hoje está revisitada, reformulada, cheira a tinta fresca, tem polêmica, tem restaurante, Centro de referência da música, centro de artesanato, studios e até galeria de arte! Neste Inverno Cultural foi o grande ponto de encontro de artistas, turistas, gente bonita, pensante, interessante, gente nova que eu nunca vi, em movimentadas noites de boêmia cool! Isso que é levantar do chão de paralelepípedos, sacudir a poeira e dar a volta por cima com todos os lampiões, sinuosidades e casarios lindos e coloridos desta interessante rua da Cachaça!

No Largo vizinho, uma procissão com Nossa Senhora de roca ou de madeira, antigos registros em preto e branco ou sofisticadas imagens feitas com drone, revelam que a fé é a mesma, não importam as mudanças! Qual algodão-doce e pipoca, tem o mesmo sabor de sempre!
Sei não, mas parece que não faz mais tanto frio nestas noites de julho, acho que o vento perdeu as forças e parou de uivar. Algumas coisas estão diferentes, no meu e no seu coração. Mas continuamos indo aos shows de boas bandas no Inverno Cultural, com a alegre turma de amigos de sempre.
Se está para acontecer uma grande mudança, entre na dança, na roda, não adianta muito ser do contra, se manter inflexível. A vida é salpicada de açúcar (pra mudar docemente) ou sal (pra mudar com força) e assim vai até a mudança definitiva, aquela da passagem do material para o espiritual, tão amarga para quem fica. Enquanto ela não chega, para todo inesperado desvio de rota, tenha peito aberto, experimente os novos sabores, tenha olhos curiosos e mente esponja! De mala e cuia para outro país ou enchendo mais um caminhão e partindo para outra cidade, salve a 'mu-dança' e toda a renovação, desapego e movimento que ela traz!
As pancadas das horas do relógio da matriz sempre teremos! Sentidas de pertinho ou imaginadas nos ouvidos aguçados do são-joanense que está longe! Se elas estão mesmo aceleradas? Não sei, pode ser só impressão...  de que alguma coisa mudou!

Foto: Rua da Cachaça em noite de Inverno Cultural 2015, por Babi Diláscio