Nasci num simpático sobrado de tamanho satisfatório para uma
família de seis pessoas. Na sala, havia
uma estante que chegou para nossa casa doada por alguma tia. Esta estante não
era muito grande, tinha apenas três longas prateleiras de compensado revestido
que se equilibravam em seis blocos. Mas para olhinhos que veem tudo da altura
de uma criança, ela era enorme, linda, imponente, importante, cheia de classe,
design e destaque!
Muitos eram os títulos, clássicos nacionais, internacionais
, de muitos autores famosos dentre filósofos alemães, físicos americanos,
romancistas populares, escritores consagrados, premiados, edições raras. Muitos
livros infanto-juvenis, didáticos, dicionários e toda a sorte de manuais de
televisão, rádio, e dezenas de outros aparelhos domésticos e até de máquinas
industriais. Havia também os livros de autores são-joanenses, um ou outro livro
de anedotas, alguns exemplares de antigas revistas, livros de culinária, ervas
medicinais e a bíblia com capa de madeira! Não lembro de nenhum livro de
autoajuda, mas devia ter algum. E ocupando grande espaço, as rainhas das
antigas estantes: as enciclopédias!!! Sim, porque naquele tempo o senhor Google
nem sonhava em ser concebido e nos restava, para pesquisa de todas as coisas, as
limitadas páginas daqueles enfileirados e grossos livros com capas duras de
cores vivas, letras douradas e encadernação de brochura.
Era assim nossa biblioteca particular, muitas eram as cores,
as texturas das capas, os tamanhos, tudo com aquele cheiro de livro que eu não
sei explicar, só quem lê sabe deste aroma!
Quando mudamos de casa para apartamento, a estante foi
ocupar um corredor. E todos os livros continuaram conosco, crescendo cada vez
mais em exemplares, e nós em conhecimento, desenvolvendo nossas preferências e
afirmando nossas aversões. Mas o tempo foi corroendo aquelas prateleiras e um
dia a estante foi desfeita, os livros guardados em caixotes. Ora! Lugar de
livros é na estante! Livros não são apenas para serem lidos, consultados esporadicamente,
precisam ser vistos, notados para não sejam esquecidos e nem roídos por
abomináveis traças. Não que os livros sejam enfeites, não, eles são mais que
isso, tem memória, alma, presença! Engraçado que eu nunca fui uma leitora assim
tão assídua, mas conhecia bem cada um deles, sejam eles lidos por mim ou não.
Meus pais se foram, os filhos estão cada um num canto e a maioria
dos livros da estante da minha família se perdeu, o tempo os levou, viraram pó,
que triste, que pecado! Livro é bem precioso precisa ser conservado,
respeitado! Onde foram parar todos aqueles livros? Para onde foi o ’Tronco do
Ipê’ como todo aquele rebuscamento de José de Alencar? ‘Contam que...’ de
Lincoln de Souza, ’Reinações de Narizinho’ de Monteiro Lobato? ‘O caso da Borboleta
Atíria’ com aqueles olhos que tanto me olharam e eu nunca consegui ler, onde
anda? Ah que pesar, porque eu não li todos eles? Até os manuais de televisão
poderia ter lido, aprendido!
Felizmente alguns sobreviveram, foram cuidados, mantidos. Que
honra poder ter hoje, na estante da minha casa, na biblioteca particular que agora
eu monto aos poucos, a ‘Divina Comédia’ de Dante Alighieri, toda a Enciclopédia
Século XIX, adquiridos por meu pai, alguns exemplares de capa dura de Machado
de Assis, que foram da minha bisavó! Adoro folear o livro ‘Fogão de Lenha’ de
Maria Stella Libanio Christo, que orgulho da bíblia de capa de madeira e dos
livros sobre São João del Rei!!!
Se meu pai foi um grande leitor não sei, nas poucas vezes
que o vi debruçado sobre algum livro, com certeza era um manual de um aparelho
que ele ainda não dominava bem. Já minha mãe lia mais, devorava os famosos romances
populares da coleção Sabrina e também outros títulos famosos da época como a
série ‘Operação Cavalo de Tróia’ de J.J. Benítez. O fato é que na minha casa existiu uma estante
com muitos livros, e eles foram coadjuvantes na escrita da minha própria
história. Hoje sou eu que tenho esta consciência ‘estante’, coleciono e leio
livros, já tenho muitos e vou comprando mais outros porque quero deixa-los como
uma herança.
Esta semana, por exemplo, me tomei de saudades pelos livros
de Monteiro Lobato que li quando muito nova e me lembrei do quanto eles
tornaram minha infância ainda mais encantadora. Como não fazem parte dos livros
que resistiram ao desmoronamento da estante, quis comprar um daqueles títulos,
fui à internet e vi de tudo, mas um exemplar de ‘A Chave do Tamanho’ de 1962,
num sebo virtual me chamou a atenção. Parecia-se muito com aquele velho livro
da nossa estante. Então comprei, fiquei ansiosa por sua chegada, e quando ele
chegou voltei no tempo, eu era novamente aquela menina lendo encantada Monteiro
Lobato, se identificando com a Emília e suas peripécias! Que assim aconteça com
minha filha quando ela começar a ler porque a ‘A chave do Tamanho’, estará na
estante!