quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Há malas que vão para o além

Dentre alguns defeitos, apegada. Nunca dei importância ao trecho do poema que eu adoro, “Instantes”, atribuído ao escritor argentino Jorge Luís Borges, que diz: ‘Se voltasse a viver novamente, viajaria mais leve’! Mas eu sempre carreguei coisas demais, não arrastava bagagens pelas rodoviárias e aeroportos, mas verdadeiros baús, tanto que vez ou outra pagava por excessos. Nos dias que antecedem viagens em ocasiões pra mim especiais, na hora de arrumar as malas, me acompanha a dúvida do que usar, a instabilidade do tempo, a minha instabilidade. Será que vai combinar? Com isso, ao invés de uma calça, acabo levando três. Espero com ansiedade peculiar às vésperas de carnaval, semana santa e fim de ano, também a terceira semana de julho em São João del Rei. São dias lindos que carregam a sina de ter as mais baixas temperaturas do inverno, com prováveis charmosas neblinas ao amanhecer. É a semana da bela festa de Nossa Senhora do Carmo, dia 16, e depois é aniversário de uma amiga muito querida, oportunidade pra reencontrar velhos conhecidos e comemorar. Sem falar que é período de férias escolares e ‘Inverno Cultural’ pipocando eventos por todos os cantos, música, teatro e dança que colorem a cidade. Então eu crio expectativas, faço planos, combino almoços, passeios, visitas e outros encontros com familiares e amigos. Pensando em cada um destes momentos vou preparando a mala. Com zelo, escolho a dedo as melhores roupas e sapatos, metodicamente, criteriosamente e bem devagar pra nada faltar, nem aquela bota, nem o cachecol, e a jaqueta nova que comprei na liquidação. Tem que ter espaço pra nécessaire com as bijuterias, a outra com os cremes e perfumes, e ainda uma terceira com toda a parafernália da maquiagem. Tudo que você quer levar tem que estar ali dentro daquele espaço retangular, para mim sempre pequeno. O volume fica enorme, precisa fechar, e eu apelo pro velho hábito de sentar em cima de tudo para compactar. Quem nunca? O resultado é a reclamação de quem carrega a mala e o limite ultrapassado para a cota que cabe a cada passageiro. Foram cobrados 40 reais por excesso de bagagem, que eu nem me importei de pagar. O que interessa é que tudo estava ali e ia chegar comigo... ou não! A gente acha que nunca vai acontecer com a gente, mas um dia você desembarca feliz por chegar ao seu destino, e fica aguardando sua bagagem desfilar na esteira. Fica aguardando, aguardando, dezenas de malas, maletas, arcas, trouxas, sacolas, embrulhos, caixas, tudo vai passando, menos sua mala, até que a esteira pára. Dói, sua mala não veio, foi deixada em algum lugar, se perdeu, caiu no buraco horrendo das malas equivocadas. Extraviou! Que desespero! E agora? No meu caso, como o aeroporto Prefeito Octaviano de Almeida Neves é (ainda!) pequeno, não há esteira, o carrinho com as bagagens chega e você logo descobre que está nua, sem bagagem, sem chão, sem um pedaço de você. Preenchi um formulário e no item que pedia para descrever o que havia dentro da mala, a minha vontade foi escrever: minha alma, minha vida, o brinco que eu mais amava, o blusa que me caía bem e a jaqueta, ah a jaqueta que eu nem cheguei a usar! Mas não somos fúteis e nem materialistas, não é? Minha descrição foi simples, roupas e sapatos. Os funcionários da empresa aérea foram solícitos e políticos, prometeram minha bagagem de volta o quanto antes. Os dias foram passando e nada, eu ligava e eles ainda sem notícia do paradeiro da mala. E cada coisa que eu lembrava que estava lá dentro era uma fincada no peito, será que eu nunca mais iria ver minhas coisinhas? Os eventos não esperaram, foram acontecendo, e foi aí que comecei a entender Borges... ‘viajaria mais leve’! Diante do andor florido que parou em frente à janela que eu estava, abraçada à minha filha que batendo palmas e balançando as perninhas assistia pela primeira vez uma procissão, fui às lagrimas. Foi uma emoção única, inesquecível, e não fez diferença alguma eu estar vestida com um casaco de três invernos atrás que achei no armário.
Porque eu sentiria falta de um anel precioso se realmente o que me era caro era a consideração da amiga-comadre, o papo com as primas, o carinho das sobrinhas e priminho com minha filha? É de valor imensurável matar a saudade de estar com meus irmãos pra um almoço de domingo ou ter a casa cheia de amigos para a ‘Noite da Batata’! A felicidade tem luz própria, e eu a irradiava quando acordava de manhã e via da janela a cidade inteira abraçada numa bruma aconchegante, ou quando eu contemplava um pôr-do-sol cor de alaranjado ardente sobre a Serra do Lenheiro. Eu tinha brilho nos olhos quando simplesmente degustava uma broa de coalhada no café da tarde ou quando eu bebericava um quentão na barraquinha e curtia, depois do último dia da novena, um bom e inusitado samba na porta do cemitério, coisas que só minha São João del Rei tem! Nestes acontecimentos eu estava iluminada naturalmente não se fazia necessário o truque de passar em pontos do rosto o meu iluminador cremoso de marca famosa.
E então, eis que surge, três dias antes do meu regresso, a mala! Pesada, gorda, com tudo dentro! Senti alívio, não vou negar, mas eu já estava leve com alma lavada, e jurava pra mim mesma que dali em diante ‘viajaria mais leve’! Bom, tsc, mas isto é assunto para outra viagem, não para essa de retorno! É que eu carregava, além de todos os meus pertences, quatro pacotes dos cafés são-joanenses, Tamandaré e Soberano, para reabastecer meu estoque até a próxima vinda pra terrinha. Com esta valiosíssima carga a mais, não gosto nem de imaginar minha mala extraviada novamente! A prática do desapego, meu caríssimo Borges, fica adiada para o inverno de 2013! Foto 1: Ana Helena presenciando pela primeira vez a procissão de Nossa Senhora do Carmo por Bia Viegas Foto 2: Projeto ‘Samba na Praça’por Guia das Vertentes