sexta-feira, 21 de maio de 2010

O que se vê, veja bem

- O que? -perguntei, não entendendo patavina o que o senhor que estava sentado do outro lado corredor, estava querendo me dizer ao apontar o teto.
O piloto tinha acabado de anunciar a decolagem e em seguida o chefe de cabine avisou que iriam diminuir as luzes internas.
O senhor apontou o teto de novo, sem dizer nada... Mas desta vez apontou também para a revista que eu segurava.
Fiz de novo aquela cara de perdida, levantando os ombros como se dissesse novamente: “O que?”
O que, meu Deus, o que?
Foi então que a senhora que estava ao lado dele revelou:
- Ele está te aconselhando a ligar a luz de leitura para ler sua revista.
-Ah ta, obrigada – e sorri agradecida, não sei se pelo desfecho do mistério ou pela delicadeza do conselho.
-Mas está bom assim, está dando para ler – concluí.
-Não, liga sim! -Falou finalmente o senhor, incisivo e apontando para o botão no teto.
Eu acabei ligando a luz e a leitura se deu de fato mais facilmente.
-É melhor assim, para não forçar a vista, não é? – sorri novamente.
-Muito bem, parabéns. – ele disse gentilmente.
Ele estava implicitamente me dizendo também: “Ah muito bem, venceu sua teimosia, própria dos jovens que não sabem valorizar os ensinamentos dos mais velhos. Hoje seus olhos estão ótimos, mas nem sempre será assim, porque então forçá-los agora? Pode até ser crendice que ler no escuro pode desgastar a vista, mas se tem uma luz de leitura para ser utilizada, porque não ascender?”
Continuei lendo a matéria da revista à luz da lâmpada de leitura direcionada para minha cadeira, à luz da sabedoria, mas a matéria perdera totalmente a graça, estava mais interessada em divagar sobre o ‘ver bem’.
Você sabe ver a vida da melhor maneira? O que se descortina à frente da janela da sua alma?
Eu confesso que me policio para isso, mas nem sempre as minhas retinas estão limpas, eu arrumo alguma coisa pra embaçá-las ou insisto em ficar no escuro.
Por exemplo, quando nos deparamos com situações complicadas em que entendemos que perdemos algo que nos era muito precioso, nos entregamos ao desespero, ao despedaçar-se aos poucos, aos lamentos internos, à dor. Por teimosia, por inflexibilidade, por não querer ver nada senão aquilo, senão vivenciar a desilusão do que parecia única salvação. Vista turva!
A perda existe de fato, mas toda perda implica em se ganhar algo mesmo que pareça ser uma desconfortável derrota, uma experiência de resignação e até outra possibilidade não imaginada. Como diz o ditado: “Deus não fecha uma porta sem abrir uma janela”. Preste atenção! Pisque seus olhos, esfregue-os se preciso for, estique seu pescoço e veja o que se encontra ao seu redor, é tudo tão ruim assim? Consegue enxergar o que tem dentro de você mesma, sua capacidade de dar a volta por cima, seus talentos, seu sorriso? Mesmo que um pensamento recorrente não se deu como desejava, o que você ainda tem? Está vendo? Sua família maravilhosa e presente, os amigos que te ouvem, outros que confortam e te fazem bem por serem também loucos?! Consegue vislumbrar o leque de outros caminhos que traz o amanhã? Pode não estar ali na sua frente, talvez seja preciso entrever, virar-se para a esquerda, direita, se contorcer e verificar também atrás, abaixar-se, aproximar. Se pode ver, com esforço e criatividade é porque tem boa visão, não vai precisar usar óculos tão cedo.
Viu que simpático o senhor do outro lado do corredor segurando a mão da esposa e preocupando-se com minha leitura no escuro? Mal sabe ele que me fez ver muitas outras coisas pra lá da revista.
Ascenda a luz direcionada especialmente para você! Veja além, melhor e por longo, longo tempo!

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Que bom!



Onde a ‘Tiradentes’, com sopros de liberdade, rasga ‘Gabriel Passos’, jornalista e ministro de Minas e Energia; bem ali, bate o coração de São João Del Rei. Uma mineirinha esquina, onde caberia perfeitamente o nascimento do ‘Clube da Esquina’, porque também ali surgiram tantas outras turmas de amigos, e é onde os sonhos não envelhecem!
Uma quadra mística com filosofia única e vida própria. Nenhum corretor especulou seu valor, ela aconteceu despretensiosa como convém às boas coisas da vida. Numa tarde vestiu seu rótulo, abraçou seus filhos sentados em seus degraus, tornou-se ponto sem pudores, nem becos sem saídas, vinha da ponte ou descia do Bonfim, sentido destino.
Hoje em dia, talvez não se fale mais: “Vamos dar uma volta ali na Kibon?”. Atualmente é a Rua do Shopping, ou simplesmente ‘A Rua’. Mas esta história começa com doce sabor de sorvete, de uma sorveteria, lanchonete do Claudionor, único lugar nos anos 70 onde vendia Kibon.
Não importa como você a chama, é lá até hoje que se desfila o carro novo, a potência do novo som do carro, a namorada nova, se discute política e se abraça um velho amigo. É lá que se conta a última da fulana, o que o sicrano aprontou, e o que o beltrano fez desta vez. A moda passa por aquelas ruas, os costumes, as gírias, as regras, e a quebra delas. Atravessam-se os dias, se vão as tardes movimentadas e barulhentas, caem as noites agitadas, e se estendem as longas e alucinantes madrugadas. Ela vê partirem os anos em alegres réveillons, testemunha as fases da vida, as muitas gerações que caminham agressivas e outrora devagar. Na Kibon passo eu, passa você, passou ela interessada e ele apaixonado, juntos de mãos dadas e agora cada um numa calçada.
Lugar melhor não há para pitar o cigarro, tomar uma gelada ou um estimulante café e tamborilar os dedos na mesa, comer qualquer coisa na pressa, ver o tempo dissipar, brincar com a sorte, no meio-fio se equilibrar.
Eternamente jovem, embora com sabedoria de uma cinquentona, ainda é diversidade. Entende que se fecham Clever’s Bar, a sóbria Confeitaria da Vovó, se abrem Café Del Rei, perde-se Kuka, se encontra num Paiol, ouvindo Mozart cantar no Pizza Mia. Esteve adolescente na Max Burger, Peanut’s, Green’s, pastelaria Ok e hoje tem o Shopping Hills. Moradores vão e vem no Edifício São João, dança-se valsa no Salão dos Espelhos do Minas, janta-se sempre na Cantina do Ítalo. A noite é badalada do Postinho a outras esquinas, passando pelo Canjão que virou Sal e Pimenta e São Jorge, Pub’s, Terraço’s, Fio de Seda, Cantinho da Canja até o Zotti... Bares e boates de uma lista sem fim.
E passam por ela também as procissões já que estamos em terra de sagrado e profano. Em fevereiro parte dali o carnaval com a Bandalheira e terminam ali com outros blocos. Foram tantos pré-carnavais em vermelho e branco, azul e branco, e tantos carnavais, tantas multidões, tantas confusões. Palco pra comemoração dos jogos da Copa, político faz comício, um ou outro protesta na porta da prefeitura, ou se clama por justiça em frente ao fórum. As notícias estão nos postes em jornais provincianos, e também na banca. Se Kibon fosse larga e comprida avenida não seria tão deliciosamente completa, tumultuada e acolhedora!
Ah... alguma coisa acontece no meu coração, mas só quando eu dobro esta esquina, e ouço Jonh Lennon cantar “All you need is Love”.
Encontro que não precisa ser marcado, eu te vejo lá!

Foto: Antigo pôster que ficava em cima do bar da esquina (Kuka). A foto foi tirada do documentário 'Nós éramos assim'