segunda-feira, 22 de março de 2010

Estação verão


Já vais? Não é muito cedo? Olha que as tardes ainda ardem, com o sol ainda bronzeando, as nuvens brancas ainda refletem tamanha luz e faz franzir as faces. Todos aqueles que trazem a juventude no espírito te saúdam com tanta empolgação, isso não te comove? As andorinhas te festejam todos os dias, se tu partes elas também precisarão buscar novo destino, isso não te sensibiliza? Ah, que pena, tem certeza de que deves mesmo ir? Então deixa pelo menos em nossas lembranças aquela atmosfera luminosa de pôr-do-sol incandescente, aquela brisa refrescante no fim do dia que somente tu sabes soprar. Deixa também uma onda bem surfada, um sorriso de criança a esculpir castelos na areia, um banho fresco de cachoeira, uma lua bem graciosa, uma cerveja tão gelada, uma risada espalhafatosa, uma dança envolvente e também um formoso beijo de casal apaixonado. Mesmo se for para longe não carregues muita bagagem, não viajes pesado não, tu não precisas de muita coisa, só de fazer irradiar sua essência de pulsante estação. Mas... Tens certeza de que não queres inverter a ordem natural das coisas e num surto delirante prolongar sua estada entre nós? Sua companhia é tão agradável, claro que às vezes você exagera, sufoca, faz ferver as horas e com mão pesada carrega as nuvens de chuva, mas é sua característica e nós respeitamos e aceitamos como tu és! Que teu regresso seja breve, nada contra outonos, invernos ou primaveras, mas é que tu me enches mais de vida os pulmões, me marca a pele e me deixa saudades únicas. Te reencontro em dezembro num dia anil como somente tu sabes pintar!

Foto: pôr do sol na cidade de Cartagena-Colômbia

sexta-feira, 19 de março de 2010

Reluz



É verdade, ou pelo menos foi verdade. Aqui era terra rica em ouro. Não é lenda, caminhe pela serra do Lenheiro, você vai ver os veios. As marcas, as pistas da existência outrora deste metal precioso rasgam essa terra e aquelas rochas. Pergunte aos mais antigos, eles vão contar que era comum ver aquela cena no fim do dia: a silhueta dos últimos garimpeiros com os pés dentro do córrego, alheios ao burburinho do centro da cidade, calças erguidas, bateia nas mãos, lavando o fundo do filete d’água com espantosa esperança e olhos de águia. Em outros tempos - quando a vila contava apenas com algumas dezenas de casas - serpenteando as margens dos rios da redondeza chegavam toda sorte de gente, bandeirantes, aventureiros, garimpeiros, estrangeiros, quilombolas, índios, ladrões, gente trabalhadora e sonhadora, motivadas pela riqueza que proporcionaria o primeiro filão de ouro do Brasil. Era fim do século 17, e junto com Goiás e Mato Grosso, estes arredores onde hoje se encontram Tiradentes e São João del Rei responderam por 50% da produção mundial do minério dourado.
Suba o Alto das Mercês, ainda existem as profundas e misteriosas betas, onde escravos trabalharam exaustivamente ao estalar de chicotes, e fizeram emergir ouro e mais ouro. Ouro que virou pó e foi escondido de todo santo jeito até em santas ocas. Ouro nosso que por ordem da coroa fundiu e pesou no quinto, que fomentou os primeiros atos de corrupção e sonegação, que percorreu longo caminho no lombo dos muares, que foi também roubado, contrabandeado, extraviado no alto destas serras e picadas de mata da Estrada Real. Depois o que restou ganhou o mar e aqueles navios que conseguiram escapar dos ataques piratas, levaram nosso ouro a Portugal, que pagou dívida à Inglaterra e assim finalmente decorou famosos palácios de lá e riquíssimas jóias reais. Quem sabe se uma parte da genuína dourada riqueza está mesmo nas nossas igrejas, fazendo brilhar altares na matriz de Santo Antônio em Tiradentes e na matriz de São João? Quem o viu transformar em majestosa coroa que adorna a cabeça da imagem de Nossa Senhora do Pilar? Quem possui uma jóia oriunda deste leito de córrego, de alguns poucos ciscos vislumbrados no fundo da bateia? Para onde foi toda a fortuna da nossa terra?
A verdade é que o recurso natural foi totalmente explorado, se extinguiu, se exauriu, morreu assassinado e absorvido gananciosamente em sua plenitude reluzente, não brota mais, não reaparece, não renasce, não brilha mais no meio da lama. Quem viveu na época da corrida aurífera, se iludiu, se encantou, mas não deixou vestígios em barras de ouro.
Eikes Batistas de antigamente, mas sem nenhuma elegância, desbravaram as montanhas, sangraram as pedras, vasculharam as profundezas dos rios, construíram muitas minas, sugaram o que encontraram e ainda por algum tempo continuaram a sugar sem nada encontrar. A terra não deixou nenhuma jazida pra trás, não há porque abrir um garimpo, se esgotou a fonte.
Ah, quer saber? Ainda bem. Respiremos em paz. A riqueza da minha terra hoje é outra, menos lasciva, é coisa escultural, de arquitetura, de música, religião, política, o são-joanense na sua essência de fé e realização. Ambição pra mim, só literária; fome só aquela de café da tarde com broa; busca desenfreada só por cultura; loucura só por amor; corrida só por exercício do corpo e mente, ali na Leite de Castro; um ambiente social fervilhante, só no carnaval! A herança da época para mim basta em livros de história, nos museus, na lembrança, e porque não com um inofensivo orgulho. A abastança que fez fama no país e lá fora, que financiou as extravagâncias das irmandades religiosas, as orquestras, que construiu com luxo, beiras e eiras esses casarões, que talhou pedra-sabão e vestiu barrocamente estas igrejas, talvez tenha se quietado no tempo certo. Basta hoje contar a fábula já que nem todos têm o dom de desvendar o que numa terra realmente reluz!

Foto: Altar mor da Matriz do Pilar coberto por folhas de ouro. A igreja é a quarta mais rica do país.